domingo, 25 de março de 2007

Amei-te e por te Amar... (Fernando Pessoa)


Amei-te e por te amar

Só a ti eu não via...

Eras o céu e o mar,

Eras a noite e o dia...

Só quando te perdi

É que eu te conheci...


Quando te tinha diante

Do meu olhar submerso

Não eras minha amante...

Eras o Universo...

Agora que te não tenho,

És só do teu tamanho.


Estavas-me longe na alma,

Por isso eu não te via...

Presença em mim tão calma,

Que eu a não sentia.

Só quando meu ser te perdeu


Vi que não eras eu.

Não sei o que eras. Creio

Que o meu modo de olhar,

Meu sentir meu anseio

Meu jeito de pensar...

Eras minha alma, fora

Do Lugar e da Hora...


Hoje eu busco-te e choro

Por te poder achar

Não sequer te memoro

Como te tive a amar...

Nem foste um sonho meu...

Porque te choro eu?


Não sei...

Perdi-te, e és hoje

Real no [...] real...

Como a hora que foge,

Foges e tudo é igual

A si-próprio e é tão triste

O que vejo que existe.


Em que és [...] fictício,

Em que tempo parado

Foste o (...) cilício

Que quando em fé fechado

Não sentia e hoje sinto

Que acordo e não me minto...


[...] tuas mãos, contudo,

Sinto nas minhas mãos,

Nosso olhar fixo e mudo

Quantos momentos vãos

Pra além de nós viveu

Nem nosso, teu ou meu...


Quantas vezes sentimos

Alma nosso contacto

Quantas vezes seguimos

Pelo caminho abstrato

Que vai entre alma e alma...

Horas de inquieta calma!


E hoje pergunto em mim

Quem foi que amei, beijei

Com quem perdi o fim

Aos sonhos que sonhei...

Procuro-te e nem vejo

O meu próprio desejo...


Que foi real em nós?

Que houve em nós de sonho? De que

Nós fomos de que voz

O duplo eco risonho

Que unidade tivemos?

O que foi que perdemos?


Nós não sonhamos.

Eras Real e eu era real.

Tuas mãos - tão sinceras...

Meu gesto - tão leal...

Tu e eu lado a lado...

Isto... e isto acabado...


Como houve em nós amor

E deixou de o haver?

Sei que hoje é vaga dor

O que era então prazer...

Mas não sei que passou

Por nós e acordou...


Amamo-nos deveras?

Amamo-nos ainda?

Se penso vejo que eras

A mesma que és... E finda

Tudo o que foi o amor;

Assim quase sem dor.


Sem dor...

Um pasmo vago

De ter havido amar...

Quase que me embriago

De mal poder pensar...

O que mudou e onde?

O que é que em nós se esconde?


Talvez sintas como eu

E não saibas senti-o...

Ser é ser nosso véu

Amar é encobri-o,

Hoje que te deixei

É que sei que te amei...


Somos a nossa bruma...

É pra dentro que vemos...

Caem-nos uma a uma

As compreensões que temos

E ficamos no frio

Do Universo vazio...


Que importa?

Se o que foi

Entre nós foi amor,

Se por te amar me dói

Já não te amar, e a dor

Tem um íntimo sentido,

Nada será perdido...


E além de nós, no Agora

Que não nos tem por véus

Viveremos a Hora

Virados para Deus

E n'um (...) mudo

Compreenderemos tudo.

Nenhum comentário: